{Recomenda-se, anteriormente à leitura deste texto, a leitura dos tópicos da galeria do portal virtual: "Os Clãs da Bruxaria na Antiguidade", "A Ordem Rosacruz e suas Origens" e "Ordem Rosacruz Irmandade de Crotona e seu Conventículo de Nova Floresta", para que tenha suporte suficiente para entender o que o autor abaixo sugere nas entrelinhas deste texto}.
Livro: “A Arte Sagrada de Shakespeare: o
mistério do homem e da obra”
(Hamlet, Otelo, Macbeth, Rei Lear, e A
Tempestade).
Autor: Martin Lings
Apresentação
do Príncipe de Gales
Estou muito satisfeito com a publicação
desta edição do livro notável do Dr. Martin Lings. Ele procura interpretar para
uma audiência mais ampla a sabedoria profunda que está contida no simbolismo de
algumas peças de Shakespeare. Trata-se de um livro cuja leitura achei difícil
de interromper, uma vez que sem dúvida foi escrito a partir de uma consciência
íntima e pessoal do significado dos símbolos que Shakespeare usa para descrever
o drama interior da jornada da alma, drama este que está contido, por assim
dizer, no drama exterior terreno das peças.
É claro que a dificuldade em escrever
alguma coisa sobre Shakespeare é que muitos já o fizeram, e assim continuará
sendo por gerações. Todas as teorias concebíveis sobre o sentido de suas peças,
sua autenticidade e sobre seu amor parecem ter sido ventiladas em um tempo ou
outro. Algumas destas teorias são mais esotéricas que outras, e atrevo-me a
dizer que o livro do Dr. Martin Lings será visto como demasiadamente esotérico
por muitos.
Seja como for, a percepção do autor
neste campo da experiência humana seguramente tocará uma corda harmoniosa no
coração de algumas pessoas e poderá abrir para elas uma porta oculta em um
recanto de seu ser – recanto do qual elas podem não ter estado conscientes.
Poderá, também, transformar seu entendimento e sua apreciação das peças de
Shakespeare e de seu gênio intuitivo e levá-las a compreender que o verdadeiro
significado de nossa existência terrena está inscrito no contexto da grande
odisseia interior que somos chamados a realizar.
Sua Alteza Real,
O Príncipe de Gales.
A Arte Sagrada
Nas últimas décadas, tem havido um
considerável aumento de interesse pela Idade Média. Não há dúvida de que em
parte isso se deve a uma reação; no entanto, trata-se também, e muito mais, de
um caso da ignorância dando lugar ao conhecimento. Em outro sentido, é
simplesmente a volta à superfície de algo que sempre existiu e que está sempre
sendo redescoberto. Não poderíamos dizer que, no fundo, sempre sentimos a
superioridade da Idade Média em todos os lugares em que permaneceu conosco e em
que não deixou de ser acessível, apesar da barreira erguida pelo Renascimento?
Por exemplo, na poesia de Dante, ou – para dar um exemplo mais acessível e
inevitável ainda – em sua arquitetura? Este sentimento implica também, ainda
que subconscientemente, o reconhecimento de uma superioridade mais geral, uma vez
que é totalmente impossível que as grandes catedrais normandas e góticas tivessem
surgido de uma época que não apresentasse uma excelência interior que
correspondesse a estas manifestações exteriores superlativas.
Uma das principais razões para o aumento
do interesse pela Idade Média é, em si mesma, altamente significativa: durante
os últimos cinquenta anos os europeus têm se interessado pela arte de outras
civilizações mais que em qualquer outra época, e isto, sem dúvida, extirpou
muitos preconceitos e abriu a porta para uma certa objetividade e frescor de
julgamento. Depois de terem conhecido alguns dos melhores exemplos da arte
hindu, chinesa e japonesa e, como que voltando-se para sua própria civilização,
muitas pessoas, ao voltarem sua atenção para a arte de sua própria civilização,
percebem que seu ponto de vista foi mudado irrevogavelmente. Após contemplarem
uma grande paisagem chinesa, por exemplo, em que o mundo aparece como um véu de
ilusão além do qual, quase visível, reside a Realidade Infinita e Eterna, ou
após terem vislumbrado esta mesma Realidade através de uma estátua de Buda,
elas encontram dificuldade em levar a sério uma pintura tal como a famosa Madona de Rafael, ou o afresco da Criação de Michelangelo, para não falar
de sua escultura, e tampo Leonardo as satisfaz. Mas as pessoas percebem que podem
levar verdadeiramente a sério, e mais a sério do que antes, algumas das
primitivas pinturas senesas, como a Anunciação
de Simone Martini, por exemplo, ou a estatuária e os vitrais de Chartres, ou os
mosaicos do século XII e XIII em São Marcos de Veneza, ou os ícones da Igreja
Ortodoxa.
A razão pela qual a arte medieval pode
ser comparada com a oriental como nenhuma outra do Ocidente é que,
indubitavelmente, a perspectiva medieval, como a das civilizações orientais,
era intelectual. Ela considerava este mundo sobretudo como uma sombra ou
símbolo do mundo vindouro, e o homem como uma sombra ou símbolo de Deus; e uma
tal atitude, para ser operativa, pressupõe a presença de intelectuais, pois as
coisas terrenas só podem se ligar a seus arquétipos espirituais através da
faculdade da percepção intelectual, a intuição que penetra através do símbolo
até a realidade universal que está mais além. Nas civilizações teocráticas,
ainda que o artista não fosse um intelectual, ele obedecia a cânones
estabelecidos sobre uma base intelectual.
Em seu sentido mais completo, a arte
sagrada é a arte que se conforma a cânones fixados não por indivíduos, mas pela
autoridade espiritual da civilização em questão, como era o caso da arquitetura
medieval Cristã, do canto gregoriano, do antigo drama Grego, do teatro Nô Japonês,
da dança e da música do templo Hindu – para dar só alguns exemplos – e tal arte
é sempre algo como um critério e também uma fonte de inspiração potencial para
obras menos centrais. Um teatro medieval é acima de tudo um retrato do Espírito
que resplandece por detrás de um véu humano. Em outras palavras, ele é como uma
janela que se abre do particular para o universal, e embora se encontre
incrustado em sua própria época e civilização e seja eminentemente típico de um
período e lugar determinados, tem ao mesmo tempo, em virtude desta abertura,
algo que não pertence nem ao Oriente e nem ao Ocidente, nem pertence a uma
época mais do que a outra.
Se a arte renascentista carece desta
abertura para o universal e é totalmente limitada à sua própria época, é porque
sua perspectiva é humanista; e o humanismo, que é uma revolta da razão contra o
intelecto, considera o homem e outros objetos terrenos inteiramente por si
mesmos, como se não houvesse nada além deles. Ao pintar a Criação, por exemplo, Michelangelo trata Adão não como um símbolo,
mas como uma realidade independente; e desde que ele não retrata o homem à imagem
de Deus, o resultado inevitável é que retrata Deus à imagem do homem. Há mais
divindade subjacente no retrato de São Francisco de autoria de Simone Martini
do que na representação que Michelangelo faz do próprio Criador.
Shakespeare nasceu menos de três meses
após a morte de Michelangelo, e se diz frequentemente de ambos que são dois dos
“grandes gênios do Renascimento”. Entretanto, como situar Shakespeare à luz de
uma abordagem intelectual que aumenta ainda mais, se isto é possível, o nosso
respeito por Dante, mas que diminui bastante nossa estima por vários outros
cuja proeminência tem sido inquestionada durante tanto tempo? Os capítulos
seguintes são uma tentativa de responder a esta questão mais detalhadamente;
mas uma resposta geral pode ser dada imediatamente. Citemos, como pedra de
toque, uma síntese magistral da diferença entre a arte renascentista e a
medieval: “Quando estamos diante de uma catedral românica ou gótica, nos
sentimos no centro do mundo; estando em frente a uma igreja renascentista,
barroca ou rococó, nos sentimos apenas na Europa”[1].
Ora, sem tentar dar a Shakespeare um lugar tão essencial na arte da cristandade
como o que é ocupado pelas catedrais ou pela Divina Comédia, será que não poderíamos dizer que estar presente a
uma encenação adequada do Rei Lear
não é simplesmente assistir a uma peça, mas sim testemunhar, misteriosamente,
toda a história do gênero humano?
Mas esta observação provavelmente não
poderia ser aplicada à maioria dos escritos de Shakespeare, e se desejamos
formar qualquer juízo do dramaturgo maduro cuja perspectiva conferiu-lhe uma
universalidade que é um prolongamento da universalidade da Idade Média, a
primeira coisa a ser feita é, no momento, pôr de lado a maioria de suas peças,
de modo a não confundir a questão. Poucos escritores, como Shakespeare, podem
ter se desenvolvido tanto durante o seu período de trabalho. No fim do século
XVI, ele já havia escrito algo em torno de 22 peças; mas de nenhuma delas se
pode dizer que represente sua maturidade, embora algumas dêem,[2]
de várias maneiras, uma antecipação inequívoca do que estava por vir.
Já não resta dúvida de que aos trinta
anos[3]
ou antes, Shakespeare estava familiarizado com várias doutrinas – algumas verdadeiramente
esotéricas, outras meramente ocultistas – que interessaram tão apaixonadamente
aos dramaturgos de Londres e outros escritores de então, bem como aos
aristocratas que os sustentavam, protegiam e encorajavam, inclusive os dois
sucessivos patronos[4]
dos atores para quem Shakespeare escreveu suas peças e com os quais atuou. É
desnecessário dizer que a corrente principal do legado místico da Idade Média
era uma corrente cristã; porém, ao final do século XVI, ela foi engrossada por
muitas outras correntes – pitagórica, platônica, cabalista, hermética,
iluminista, rosacruz, alquímica. À margem de algumas destas correntes
tradicionais estavam ciências tais como a astrologia e a magia, e muitas mentes
foram cativadas e mesmo monopolizadas por assuntos secundários desta espécie.
Mas, inicialmente, as tradições judaico-cristãs coincidiam com o misticismo
cristão, a despeito de diferenças de terminologia e perspectiva. Elas se
preocupavam, primeiramente, com os meios para purificar a alma de sua natureza
decaída e, finalmente, com o fruto desta restauração do estado primordial, a
reunião beatífica da lama com Deus.
Shakespeare, como Lyly, Spenser, Chapman
e Bem Johnson – para falar somente de alguns – estava bem consciente de que o
resultado do matrimônio químico do enxofre e do mercúrio, ou do “Rei e da
Rainha” (a Magnum Opus dos
alquimistas), é a alma ressuscitada e perfeita, e que, portanto, a obra alquímica
é, assim, um primeiro estágio indispensável na via que leva à união mística da
alma perfeita com o Espírito Divino. De fato, esta união é o tema do poema
alquímico de Shakespeare “A Fênix e a Tartaruga”, como Paul Arnold demonstrou
em seu comentário detalhado;[5]
e se alguns objetam que este poema atinge uma maturidade extremamente profunda,
que é difícil de ser contada entre as obras dos meados de 1590,[6]
essa mesma união – o matrimônio precedido condicionado pela provação e
purificação – é nada menos que o tema de mais de uma das primeiras peças de
Shakespeare. Com relação a isto, o leitor deve somente olhar de relance os
capítulos bem documentados de Arnold sobre Trabalhos
de Amor Perdidos e O Mercador de
Veneza[7]
ou o capítulo de Jean Paris sobre o “teatro alquímico” em Shakespeare.[8]
O ponto a ser assinalado aqui não é o de
que muitas das primeiras peças tracem simbolicamente o caminho dos Mistérios,
mas sim que elas eram muito teóricas para serem plena e “concretamente”
vinculada aos Mistérios. Na via esotérica, o conhecimento doutrinal tem de ser
obtido pela mente antes de ser assimilado existencialmente pelo homem como um
todo; e este processo de desenvolvimento reflete-se externamente na ordem
cronológica de suas peças, pois uma coisa é fazer uso de uma reunião de
símbolos, e outra é entrar totalmente em seu simbolismo. [...]
[...] “Deuses sempre gentis, tirem de mim meu alento:
Não
permiti que meu pior espírito me tente novamente
A
morrer antes que vos apraza”.
[...] Antes do fim de seu período de
atividade literária, era proibido por lei mencionar o nome de Deus em cena.
Era, porém, sempre possível referir-se aos “Deuses”; e se ele, deliberadamente,
escolheu situar muitas de suas peças maduras em um cenário pré-cristão, deve
ser observado que, no entanto, sua atitude em relação à Grécia e a Roma não é
típica da Renascença. Shakespeare não estava simplesmente tomando emprestada a
superfície da antiguidade clássica. Ele se colocou no próprio centro do mundo
antigo. Para ele e para Dante, assim como para os antigos sacerdotes e sacerdotisas
de Delfos, Apollo não é [apenas] o deus da luz – e sim a Luz de Deus.
[...] Se Shakespeare foi um continuador
do passado, a qual destas duas categorias sua arte pertence, à esotérica ou à
exotérica? Um exemplo do que pode ser chamado de obra exotérica, que se detém
no sentido mais elementar de salvação, é O
Castelo da Perseverança. Nesta peça de moralidade, a humanidade (humanum genus) é representada como tendo
levado uma vida muito discutível, e é salva do Inferno, da face da justiça,
pela virtude da misericórdia divina. Um exemplo supremo de obra esotérica é A Divina Comédia, que pressupõe a
salvação e trata da purificação do homem e sua santificação última – ou, em
outras palavras, da recuperação daquilo que havia sido perdido com a queda. Pode-se
dizer que, na Idade Média, considerava-se que a massa dos leigos seguia a via
da salvação, enquanto as ordens monásticas e as ordens laicas que a elas se
ligavam (e uma ou duas outras irmandades, como a dos Maçons e a dos
Companheiros) visavam seguir a via da santificação. Dito de outro modo, elas
tinham como meta atravessar o purgatório nesta vida. Hoje se sabe que Dante
pertenceu a uma irmandade afiliada a Ordem do Templo,[9]
e que passou a uma situação mais ou menos clandestina quando a Ordem do Templo
foi abolida. Alguns supõem que Shakespeare foi um membro da irmandade Rosacruz;
outros acreditam que ele foi Maçom. Esta é uma parte de seu segredo que
provavelmente não se conhecerá nunca, e não está no escopo destas páginas
insistir em alguma coisa que não seja óbvia a partir daquilo que o próprio
Shakespeare escreveu. O que é óbvio, de qualquer modo, é que suas peças
transcendem a ideia de salvação em seu sentido mais limitado; e deve ser
observado, de passagem, que isto sugere que ele seguia uma via espiritual – o que
implica a filiação a uma ordem.
[...] Foi, contudo, privilégio de Dante
estabelecer, para a cristandade, um desses ápices da arte que toda teocracia
está fadada a ter, e isto provavelmente não pode ser dito de Shakespeare. A
cristandade é de fato a civilização tradicional mais próxima de sua arte, e provincialmente
ele nasceu na época exata para ser capaz de dotar suas peças com uma grandeza
medieval extraída daquele mundo. Já demos dois exemplos de seu modo universal
de expressão: “a prontidão é tudo”, de Hamlet, e “maturidade é tudo”, de Edgar,
mas estes são apenas dois de uma multidão. Através de suas peças, somos
relembrados vezes sem conta do que Sophocles chamara “os estatutos não escritos
e incontestáveis dos Deuses... não de hoje, nem de ontem, mas de todos os
tempos, e ninguém sabe quando eles foram estabelecidos”[10].
Estas palavras são frequentemente tomadas como referência ao que é geralmente
conhecido como a filosofia perene, ou religio
perennis; e é nessa religião subjacente a tudo, e não em qualquer forma
religiosa particular, que a arte de Shakespeare está enraizada. Isso não
significa que ele não fosse um cristão devoto e praticante. A piedade
pré-religiosa não pode ser adotada no lugar da religião particular de qualquer
tempo e local.
Ademais, um fator essencial desta
piedade é a mediação entre céu e terra, que é uma característica espontânea do
homem primordial em função de seu acesso, por assim dizer, “orgânico” ao
Espírito. Mas, na falta disso, a mediação só pode acontecer pela realização de
ritos que a religio perennis não
outorga – e aqueles que reconquistaram este acesso libertador ainda continuam a
realizar tais ritos, por mais de uma razão. “Esta hereditariedade profundamente
estabelecida (religio perennis) é
como a lembrança do paraíso perdido e pode irromper na alma por uma sorte de
atavismo providencial”[11].
Acreditamos que Shakespeare foi um exemplo eminente desta possibilidade. Não é
que neguemos em Dante o mesmo atavismo, mas é que nele o atavismo brilha
através de um véu. [...] Quanto ao modo de Hamlet se expressar, Shakespeare se
permite aqui, sob o disfarce da “loucura” do Príncipe, chegar bem perto da
divulgação de segredos esotéricos. A iniciação nos Mistérios não é outra coisa
senão a inoculação ou o enxerto de um broto da natureza primordial do homem no
velho tronco de sua natureza decaída, a qual será assim apagada, com mau cheiro
e tudo – desde que o novo broto primordial seja devidamente cultivado e
implacavelmente protegido contra quaisquer parasitas que o velho tronco possa
desenvolver numa tentativa de restabelecer-se. Esse cultivo e está proteção são
os ritos e disciplinas dos Pequenos Mistérios, a via da purificação do pecado
original e a recuperação, através deste meio, do estado edênico do homem.
[...] “Uma combinação e uma forma onde realmente
Cada
um dos Deuses parece ter colocado seu selo
Para
dar ao mundo uma forma de homem” (III,
4, p. 60-62)[12].
[...] O Inferno e o Purgatório juntos
constituem o que a antiguidade greco-romana conheceu como os “Pequenos
Mistérios” (Mysteria Parva). Hamlet
agora penetrou totalmente nesses Mistérios e está, portanto, numa situação
paralela à de seu pai – daí a preocupação com o pecado. [...] O que a mística denomina
a “Descida aos Infernos”, isto é, a descoberta de inclinações pecaminosas na
alma até então desconhecidas, algumas vezes toma a forma de uma verdadeira
consumação dos pecados em questão, como acontece, por exemplo, com Ângelo em Medida por Medida e com Leontes em Conto de Inverno. O caso de Macbeth é,
como veremos, bem diferente, pois esta é uma descida sem retorno, não
relacionada aos Mistérios. [...] Em Hamlet, como vimos, o Rei assassinado tinha
um duplo aspecto, como o próprio Adão: um caído e o outro não. Mas em Macbeth,
Duncan nada representa senão a santidade. Muitas produções não tomam o cuidado
de assegurar que os representantes do céu sejam suficientemente
impressionantes. [...] É significativo que ele tenha se expressado sobre si
mesmo usando termos referentes à luz. Aqui, não há dúvida de que Macbeth é
mencionado como o principal entre aqueles sobre quem as honras secundárias “brilharão
como as estrelas”. [...] À moda de Lucifer, ele desdenha ser a mais brilhante
das lumeeiras secundárias. Em seu aparte à plateia, quando deixa a cena, suas
palavras: “Estrelas, escondei vossos vulgores” tem portanto duplo sentido, pois
retomam as palavras do Rei e são uma rejeição orgulhosa de todas as honras
secundárias.
[...] “Tu, natureza, és minha Deusa: as Tuas leis empenho meus serviços” (I,
2, p. 1-2).
[...] “Ainda, para uma confirmação maior,
(pois,
em uma ação desta importância,
seria
extremamente lamentável estar desorientado),
Despachei
como mensageiros para a sagrada Delfos,
Para
o Templo de Apollo, Cleomenes e Dion...
Agora
[mensageiros] do Oráculo, eles trarão tudo;
A
partir de seu aconselhamento espiritual,
Eles
me deterão ou me incentivarão” (III,
1, p. 180-187).
[...] Também podemos fazer uma
observação análoga sobre a sua cunhagem de palavras. Criados também, mais do
que fabricados, são os mundos nos quais as peças estão situadas: cada qual é
como uma esfera única de existência, com sua atmosfera própria, que a faz
completamente distinta de todos os outros macrocosmos shakespearianos. Mas o
contato com uma fonte transcendente é sugerido, acima de tudo, pela constante
repetição de um efeito transcendente. Tal contato é um segredo, pois pertence
ao campo dos Mistérios; mas o verdadeiro propósito original da arte (que é a
razão primordial de sua existência) é justamente “comunicar segredos” – não de qualquer
maneira, mas oferecendo-os, por assim dizer, “com a mão entreaberta”,
aproximando-os de nós e convidando-nos a nos aproximarmos deles. Em geral se
admite que, em A Tempestade, a magia
de Próspero, além de seus outros significados, tem a intenção de representar os
poderes artísticos do próprio Shakespeare. A arte verdadeiramente inspirada é
uma espécie de “magia branca” que encanta e fascina e que nos transforma
momentaneamente, realizando, por assim dizer, o impossível, e fazendo-nos
literalmente superar a nós mesmos, como se fôssemos espiões de Deus.
[1] Frithjof Schuon. A Unidade
Transcendente das Religiões. Harper
and Row, 1984, p. 61.
[2] Romeu e Julieta, por exemplo, Sonho de uma Noite de Verão, Henrique IV, Como Gostais e Noite de Reis.
[3] Em
1594; foi provavelmente neste ano que ele escreveu Trabalhos de Amor Perdidos e, no ano seguinte, Romeu e Julieta e Sonho de
uma Noite de Verão.
[4]
Ver Paul Arnould. Esotérisme de Shakespeare. Mercure de France, 1955, p. 60-61.
[5] Ibid., p. 130-139.
[6] Sua
primeira publicação deu-se somente em 1601.
[7] Ibid., Paul Arnold, Capítulos I e IV.
[8]
Evergreen Books. Shakespeare. 1960.
[9] Ver
René Guénon. O Esoterismo de Dante. Gallimard, 1957, p. 11.
[10] Antigona, p. 454-457.
[11] Frithjof Schuon. The Essential
Uritings. P. 531.
[12] Hamlet.
_____________________________
Ao benemérito St. Prior J.'.E.'.C.'.S.'.
Pela divindade do Uno, do Deus e da Deusa,
Ao Filho Divino, Vida, Saúde, Força e União!
Três Vezes Abençoado.
{Recomenda-se, anteriormente à leitura deste texto, a leitura dos tópicos da galeria do portal virtual: "Os Clãs da Bruxaria na Antiguidade", "A Ordem Rosacruz e suas Origens" e "Ordem Rosacruz Irmandade de Crotona e seu Conventículo de Nova Floresta", para que tenha suporte suficiente para entender o que o autor abaixo sugere nas entrelinhas deste texto}.
Livro: “A Arte Sagrada de Shakespeare: o mistério do homem e da obra”
Livro: “A Arte Sagrada de Shakespeare: o mistério do homem e da obra”
(Hamlet, Otelo, Macbeth, Rei Lear, e A
Tempestade).
Autor: Martin Lings
Apresentação
do Príncipe de Gales
Estou muito satisfeito com a publicação
desta edição do livro notável do Dr. Martin Lings. Ele procura interpretar para
uma audiência mais ampla a sabedoria profunda que está contida no simbolismo de
algumas peças de Shakespeare. Trata-se de um livro cuja leitura achei difícil
de interromper, uma vez que sem dúvida foi escrito a partir de uma consciência
íntima e pessoal do significado dos símbolos que Shakespeare usa para descrever
o drama interior da jornada da alma, drama este que está contido, por assim
dizer, no drama exterior terreno das peças.
É claro que a dificuldade em escrever
alguma coisa sobre Shakespeare é que muitos já o fizeram, e assim continuará
sendo por gerações. Todas as teorias concebíveis sobre o sentido de suas peças,
sua autenticidade e sobre seu amor parecem ter sido ventiladas em um tempo ou
outro. Algumas destas teorias são mais esotéricas que outras, e atrevo-me a
dizer que o livro do Dr. Martin Lings será visto como demasiadamente esotérico
por muitos.
Seja como for, a percepção do autor
neste campo da experiência humana seguramente tocará uma corda harmoniosa no
coração de algumas pessoas e poderá abrir para elas uma porta oculta em um
recanto de seu ser – recanto do qual elas podem não ter estado conscientes.
Poderá, também, transformar seu entendimento e sua apreciação das peças de
Shakespeare e de seu gênio intuitivo e levá-las a compreender que o verdadeiro
significado de nossa existência terrena está inscrito no contexto da grande
odisseia interior que somos chamados a realizar.
Sua Alteza Real,
O Príncipe de Gales.
A Arte Sagrada
Nas últimas décadas, tem havido um
considerável aumento de interesse pela Idade Média. Não há dúvida de que em
parte isso se deve a uma reação; no entanto, trata-se também, e muito mais, de
um caso da ignorância dando lugar ao conhecimento. Em outro sentido, é
simplesmente a volta à superfície de algo que sempre existiu e que está sempre
sendo redescoberto. Não poderíamos dizer que, no fundo, sempre sentimos a
superioridade da Idade Média em todos os lugares em que permaneceu conosco e em
que não deixou de ser acessível, apesar da barreira erguida pelo Renascimento?
Por exemplo, na poesia de Dante, ou – para dar um exemplo mais acessível e
inevitável ainda – em sua arquitetura? Este sentimento implica também, ainda
que subconscientemente, o reconhecimento de uma superioridade mais geral, uma vez
que é totalmente impossível que as grandes catedrais normandas e góticas tivessem
surgido de uma época que não apresentasse uma excelência interior que
correspondesse a estas manifestações exteriores superlativas.
Uma das principais razões para o aumento
do interesse pela Idade Média é, em si mesma, altamente significativa: durante
os últimos cinquenta anos os europeus têm se interessado pela arte de outras
civilizações mais que em qualquer outra época, e isto, sem dúvida, extirpou
muitos preconceitos e abriu a porta para uma certa objetividade e frescor de
julgamento. Depois de terem conhecido alguns dos melhores exemplos da arte
hindu, chinesa e japonesa e, como que voltando-se para sua própria civilização,
muitas pessoas, ao voltarem sua atenção para a arte de sua própria civilização,
percebem que seu ponto de vista foi mudado irrevogavelmente. Após contemplarem
uma grande paisagem chinesa, por exemplo, em que o mundo aparece como um véu de
ilusão além do qual, quase visível, reside a Realidade Infinita e Eterna, ou
após terem vislumbrado esta mesma Realidade através de uma estátua de Buda,
elas encontram dificuldade em levar a sério uma pintura tal como a famosa Madona de Rafael, ou o afresco da Criação de Michelangelo, para não falar
de sua escultura, e tampo Leonardo as satisfaz. Mas as pessoas percebem que podem
levar verdadeiramente a sério, e mais a sério do que antes, algumas das
primitivas pinturas senesas, como a Anunciação
de Simone Martini, por exemplo, ou a estatuária e os vitrais de Chartres, ou os
mosaicos do século XII e XIII em São Marcos de Veneza, ou os ícones da Igreja
Ortodoxa.
A razão pela qual a arte medieval pode
ser comparada com a oriental como nenhuma outra do Ocidente é que,
indubitavelmente, a perspectiva medieval, como a das civilizações orientais,
era intelectual. Ela considerava este mundo sobretudo como uma sombra ou
símbolo do mundo vindouro, e o homem como uma sombra ou símbolo de Deus; e uma
tal atitude, para ser operativa, pressupõe a presença de intelectuais, pois as
coisas terrenas só podem se ligar a seus arquétipos espirituais através da
faculdade da percepção intelectual, a intuição que penetra através do símbolo
até a realidade universal que está mais além. Nas civilizações teocráticas,
ainda que o artista não fosse um intelectual, ele obedecia a cânones
estabelecidos sobre uma base intelectual.
Em seu sentido mais completo, a arte
sagrada é a arte que se conforma a cânones fixados não por indivíduos, mas pela
autoridade espiritual da civilização em questão, como era o caso da arquitetura
medieval Cristã, do canto gregoriano, do antigo drama Grego, do teatro Nô Japonês,
da dança e da música do templo Hindu – para dar só alguns exemplos – e tal arte
é sempre algo como um critério e também uma fonte de inspiração potencial para
obras menos centrais. Um teatro medieval é acima de tudo um retrato do Espírito
que resplandece por detrás de um véu humano. Em outras palavras, ele é como uma
janela que se abre do particular para o universal, e embora se encontre
incrustado em sua própria época e civilização e seja eminentemente típico de um
período e lugar determinados, tem ao mesmo tempo, em virtude desta abertura,
algo que não pertence nem ao Oriente e nem ao Ocidente, nem pertence a uma
época mais do que a outra.
Se a arte renascentista carece desta
abertura para o universal e é totalmente limitada à sua própria época, é porque
sua perspectiva é humanista; e o humanismo, que é uma revolta da razão contra o
intelecto, considera o homem e outros objetos terrenos inteiramente por si
mesmos, como se não houvesse nada além deles. Ao pintar a Criação, por exemplo, Michelangelo trata Adão não como um símbolo,
mas como uma realidade independente; e desde que ele não retrata o homem à imagem
de Deus, o resultado inevitável é que retrata Deus à imagem do homem. Há mais
divindade subjacente no retrato de São Francisco de autoria de Simone Martini
do que na representação que Michelangelo faz do próprio Criador.
Shakespeare nasceu menos de três meses
após a morte de Michelangelo, e se diz frequentemente de ambos que são dois dos
“grandes gênios do Renascimento”. Entretanto, como situar Shakespeare à luz de
uma abordagem intelectual que aumenta ainda mais, se isto é possível, o nosso
respeito por Dante, mas que diminui bastante nossa estima por vários outros
cuja proeminência tem sido inquestionada durante tanto tempo? Os capítulos
seguintes são uma tentativa de responder a esta questão mais detalhadamente;
mas uma resposta geral pode ser dada imediatamente. Citemos, como pedra de
toque, uma síntese magistral da diferença entre a arte renascentista e a
medieval: “Quando estamos diante de uma catedral românica ou gótica, nos
sentimos no centro do mundo; estando em frente a uma igreja renascentista,
barroca ou rococó, nos sentimos apenas na Europa”[1].
Ora, sem tentar dar a Shakespeare um lugar tão essencial na arte da cristandade
como o que é ocupado pelas catedrais ou pela Divina Comédia, será que não poderíamos dizer que estar presente a
uma encenação adequada do Rei Lear
não é simplesmente assistir a uma peça, mas sim testemunhar, misteriosamente,
toda a história do gênero humano?
Mas esta observação provavelmente não
poderia ser aplicada à maioria dos escritos de Shakespeare, e se desejamos
formar qualquer juízo do dramaturgo maduro cuja perspectiva conferiu-lhe uma
universalidade que é um prolongamento da universalidade da Idade Média, a
primeira coisa a ser feita é, no momento, pôr de lado a maioria de suas peças,
de modo a não confundir a questão. Poucos escritores, como Shakespeare, podem
ter se desenvolvido tanto durante o seu período de trabalho. No fim do século
XVI, ele já havia escrito algo em torno de 22 peças; mas de nenhuma delas se
pode dizer que represente sua maturidade, embora algumas dêem,[2]
de várias maneiras, uma antecipação inequívoca do que estava por vir.
Já não resta dúvida de que aos trinta
anos[3]
ou antes, Shakespeare estava familiarizado com várias doutrinas – algumas verdadeiramente
esotéricas, outras meramente ocultistas – que interessaram tão apaixonadamente
aos dramaturgos de Londres e outros escritores de então, bem como aos
aristocratas que os sustentavam, protegiam e encorajavam, inclusive os dois
sucessivos patronos[4]
dos atores para quem Shakespeare escreveu suas peças e com os quais atuou. É
desnecessário dizer que a corrente principal do legado místico da Idade Média
era uma corrente cristã; porém, ao final do século XVI, ela foi engrossada por
muitas outras correntes – pitagórica, platônica, cabalista, hermética,
iluminista, rosacruz, alquímica. À margem de algumas destas correntes
tradicionais estavam ciências tais como a astrologia e a magia, e muitas mentes
foram cativadas e mesmo monopolizadas por assuntos secundários desta espécie.
Mas, inicialmente, as tradições judaico-cristãs coincidiam com o misticismo
cristão, a despeito de diferenças de terminologia e perspectiva. Elas se
preocupavam, primeiramente, com os meios para purificar a alma de sua natureza
decaída e, finalmente, com o fruto desta restauração do estado primordial, a
reunião beatífica da lama com Deus.
Shakespeare, como Lyly, Spenser, Chapman
e Bem Johnson – para falar somente de alguns – estava bem consciente de que o
resultado do matrimônio químico do enxofre e do mercúrio, ou do “Rei e da
Rainha” (a Magnum Opus dos
alquimistas), é a alma ressuscitada e perfeita, e que, portanto, a obra alquímica
é, assim, um primeiro estágio indispensável na via que leva à união mística da
alma perfeita com o Espírito Divino. De fato, esta união é o tema do poema
alquímico de Shakespeare “A Fênix e a Tartaruga”, como Paul Arnold demonstrou
em seu comentário detalhado;[5]
e se alguns objetam que este poema atinge uma maturidade extremamente profunda,
que é difícil de ser contada entre as obras dos meados de 1590,[6]
essa mesma união – o matrimônio precedido condicionado pela provação e
purificação – é nada menos que o tema de mais de uma das primeiras peças de
Shakespeare. Com relação a isto, o leitor deve somente olhar de relance os
capítulos bem documentados de Arnold sobre Trabalhos
de Amor Perdidos e O Mercador de
Veneza[7]
ou o capítulo de Jean Paris sobre o “teatro alquímico” em Shakespeare.[8]
O ponto a ser assinalado aqui não é o de
que muitas das primeiras peças tracem simbolicamente o caminho dos Mistérios,
mas sim que elas eram muito teóricas para serem plena e “concretamente”
vinculada aos Mistérios. Na via esotérica, o conhecimento doutrinal tem de ser
obtido pela mente antes de ser assimilado existencialmente pelo homem como um
todo; e este processo de desenvolvimento reflete-se externamente na ordem
cronológica de suas peças, pois uma coisa é fazer uso de uma reunião de
símbolos, e outra é entrar totalmente em seu simbolismo. [...]
[...] “Deuses sempre gentis, tirem de mim meu alento:
Não
permiti que meu pior espírito me tente novamente
A
morrer antes que vos apraza”.
[...] Antes do fim de seu período de
atividade literária, era proibido por lei mencionar o nome de Deus em cena.
Era, porém, sempre possível referir-se aos “Deuses”; e se ele, deliberadamente,
escolheu situar muitas de suas peças maduras em um cenário pré-cristão, deve
ser observado que, no entanto, sua atitude em relação à Grécia e a Roma não é
típica da Renascença. Shakespeare não estava simplesmente tomando emprestada a
superfície da antiguidade clássica. Ele se colocou no próprio centro do mundo
antigo. Para ele e para Dante, assim como para os antigos sacerdotes e sacerdotisas
de Delfos, Apollo não é [apenas] o deus da luz – e sim a Luz de Deus.
[...] Se Shakespeare foi um continuador
do passado, a qual destas duas categorias sua arte pertence, à esotérica ou à
exotérica? Um exemplo do que pode ser chamado de obra exotérica, que se detém
no sentido mais elementar de salvação, é O
Castelo da Perseverança. Nesta peça de moralidade, a humanidade (humanum genus) é representada como tendo
levado uma vida muito discutível, e é salva do Inferno, da face da justiça,
pela virtude da misericórdia divina. Um exemplo supremo de obra esotérica é A Divina Comédia, que pressupõe a
salvação e trata da purificação do homem e sua santificação última – ou, em
outras palavras, da recuperação daquilo que havia sido perdido com a queda. Pode-se
dizer que, na Idade Média, considerava-se que a massa dos leigos seguia a via
da salvação, enquanto as ordens monásticas e as ordens laicas que a elas se
ligavam (e uma ou duas outras irmandades, como a dos Maçons e a dos
Companheiros) visavam seguir a via da santificação. Dito de outro modo, elas
tinham como meta atravessar o purgatório nesta vida. Hoje se sabe que Dante
pertenceu a uma irmandade afiliada a Ordem do Templo,[9]
e que passou a uma situação mais ou menos clandestina quando a Ordem do Templo
foi abolida. Alguns supõem que Shakespeare foi um membro da irmandade Rosacruz;
outros acreditam que ele foi Maçom. Esta é uma parte de seu segredo que
provavelmente não se conhecerá nunca, e não está no escopo destas páginas
insistir em alguma coisa que não seja óbvia a partir daquilo que o próprio
Shakespeare escreveu. O que é óbvio, de qualquer modo, é que suas peças
transcendem a ideia de salvação em seu sentido mais limitado; e deve ser
observado, de passagem, que isto sugere que ele seguia uma via espiritual – o que
implica a filiação a uma ordem.
[...] Foi, contudo, privilégio de Dante
estabelecer, para a cristandade, um desses ápices da arte que toda teocracia
está fadada a ter, e isto provavelmente não pode ser dito de Shakespeare. A
cristandade é de fato a civilização tradicional mais próxima de sua arte, e provincialmente
ele nasceu na época exata para ser capaz de dotar suas peças com uma grandeza
medieval extraída daquele mundo. Já demos dois exemplos de seu modo universal
de expressão: “a prontidão é tudo”, de Hamlet, e “maturidade é tudo”, de Edgar,
mas estes são apenas dois de uma multidão. Através de suas peças, somos
relembrados vezes sem conta do que Sophocles chamara “os estatutos não escritos
e incontestáveis dos Deuses... não de hoje, nem de ontem, mas de todos os
tempos, e ninguém sabe quando eles foram estabelecidos”[10].
Estas palavras são frequentemente tomadas como referência ao que é geralmente
conhecido como a filosofia perene, ou religio
perennis; e é nessa religião subjacente a tudo, e não em qualquer forma
religiosa particular, que a arte de Shakespeare está enraizada. Isso não
significa que ele não fosse um cristão devoto e praticante. A piedade
pré-religiosa não pode ser adotada no lugar da religião particular de qualquer
tempo e local.
Ademais, um fator essencial desta
piedade é a mediação entre céu e terra, que é uma característica espontânea do
homem primordial em função de seu acesso, por assim dizer, “orgânico” ao
Espírito. Mas, na falta disso, a mediação só pode acontecer pela realização de
ritos que a religio perennis não
outorga – e aqueles que reconquistaram este acesso libertador ainda continuam a
realizar tais ritos, por mais de uma razão. “Esta hereditariedade profundamente
estabelecida (religio perennis) é
como a lembrança do paraíso perdido e pode irromper na alma por uma sorte de
atavismo providencial”[11].
Acreditamos que Shakespeare foi um exemplo eminente desta possibilidade. Não é
que neguemos em Dante o mesmo atavismo, mas é que nele o atavismo brilha
através de um véu. [...] Quanto ao modo de Hamlet se expressar, Shakespeare se
permite aqui, sob o disfarce da “loucura” do Príncipe, chegar bem perto da
divulgação de segredos esotéricos. A iniciação nos Mistérios não é outra coisa
senão a inoculação ou o enxerto de um broto da natureza primordial do homem no
velho tronco de sua natureza decaída, a qual será assim apagada, com mau cheiro
e tudo – desde que o novo broto primordial seja devidamente cultivado e
implacavelmente protegido contra quaisquer parasitas que o velho tronco possa
desenvolver numa tentativa de restabelecer-se. Esse cultivo e está proteção são
os ritos e disciplinas dos Pequenos Mistérios, a via da purificação do pecado
original e a recuperação, através deste meio, do estado edênico do homem.
[...] “Uma combinação e uma forma onde realmente
Cada
um dos Deuses parece ter colocado seu selo
Para
dar ao mundo uma forma de homem” (III,
4, p. 60-62)[12].
[...] O Inferno e o Purgatório juntos
constituem o que a antiguidade greco-romana conheceu como os “Pequenos
Mistérios” (Mysteria Parva). Hamlet
agora penetrou totalmente nesses Mistérios e está, portanto, numa situação
paralela à de seu pai – daí a preocupação com o pecado. [...] O que a mística denomina
a “Descida aos Infernos”, isto é, a descoberta de inclinações pecaminosas na
alma até então desconhecidas, algumas vezes toma a forma de uma verdadeira
consumação dos pecados em questão, como acontece, por exemplo, com Ângelo em Medida por Medida e com Leontes em Conto de Inverno. O caso de Macbeth é,
como veremos, bem diferente, pois esta é uma descida sem retorno, não
relacionada aos Mistérios. [...] Em Hamlet, como vimos, o Rei assassinado tinha
um duplo aspecto, como o próprio Adão: um caído e o outro não. Mas em Macbeth,
Duncan nada representa senão a santidade. Muitas produções não tomam o cuidado
de assegurar que os representantes do céu sejam suficientemente
impressionantes. [...] É significativo que ele tenha se expressado sobre si
mesmo usando termos referentes à luz. Aqui, não há dúvida de que Macbeth é
mencionado como o principal entre aqueles sobre quem as honras secundárias “brilharão
como as estrelas”. [...] À moda de Lucifer, ele desdenha ser a mais brilhante
das lumeeiras secundárias. Em seu aparte à plateia, quando deixa a cena, suas
palavras: “Estrelas, escondei vossos vulgores” tem portanto duplo sentido, pois
retomam as palavras do Rei e são uma rejeição orgulhosa de todas as honras
secundárias.
[...] “Tu, natureza, és minha Deusa: as Tuas leis empenho meus serviços” (I,
2, p. 1-2).
[...] “Ainda, para uma confirmação maior,
(pois,
em uma ação desta importância,
seria
extremamente lamentável estar desorientado),
Despachei
como mensageiros para a sagrada Delfos,
Para
o Templo de Apollo, Cleomenes e Dion...
Agora
[mensageiros] do Oráculo, eles trarão tudo;
A
partir de seu aconselhamento espiritual,
Eles
me deterão ou me incentivarão” (III,
1, p. 180-187).
[...] Também podemos fazer uma
observação análoga sobre a sua cunhagem de palavras. Criados também, mais do
que fabricados, são os mundos nos quais as peças estão situadas: cada qual é
como uma esfera única de existência, com sua atmosfera própria, que a faz
completamente distinta de todos os outros macrocosmos shakespearianos. Mas o
contato com uma fonte transcendente é sugerido, acima de tudo, pela constante
repetição de um efeito transcendente. Tal contato é um segredo, pois pertence
ao campo dos Mistérios; mas o verdadeiro propósito original da arte (que é a
razão primordial de sua existência) é justamente “comunicar segredos” – não de qualquer
maneira, mas oferecendo-os, por assim dizer, “com a mão entreaberta”,
aproximando-os de nós e convidando-nos a nos aproximarmos deles. Em geral se
admite que, em A Tempestade, a magia
de Próspero, além de seus outros significados, tem a intenção de representar os
poderes artísticos do próprio Shakespeare. A arte verdadeiramente inspirada é
uma espécie de “magia branca” que encanta e fascina e que nos transforma
momentaneamente, realizando, por assim dizer, o impossível, e fazendo-nos
literalmente superar a nós mesmos, como se fôssemos espiões de Deus.
[1] Frithjof Schuon. A Unidade
Transcendente das Religiões. Harper
and Row, 1984, p. 61.
[2] Romeu e Julieta, por exemplo, Sonho de uma Noite de Verão, Henrique IV, Como Gostais e Noite de Reis.
[3] Em
1594; foi provavelmente neste ano que ele escreveu Trabalhos de Amor Perdidos e, no ano seguinte, Romeu e Julieta e Sonho de
uma Noite de Verão.
[4]
Ver Paul Arnould. Esotérisme de Shakespeare. Mercure de France, 1955, p. 60-61.
[5] Ibid., p. 130-139.
[6] Sua
primeira publicação deu-se somente em 1601.
[7] Ibid., Paul Arnold, Capítulos I e IV.
[8]
Evergreen Books. Shakespeare. 1960.
[9] Ver
René Guénon. O Esoterismo de Dante. Gallimard, 1957, p. 11.
[10] Antigona, p. 454-457.
[11] Frithjof Schuon. The Essential
Uritings. P. 531.
[12] Hamlet.
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Ao benemérito St. Prior J.'.E.'.C.'.S.'.
Pela divindade do Uno, do Deus e da Deusa,
Ao Filho Divino, Vida, Saúde, Força e União!
Três Vezes Abençoado.